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segunda-feira, 25 de maio de 2015

A Alma Impressa - Parte 1

 

  Marília era uma menina que adorava ler, mas não tinha o dinheiro necessário para comprar todos os livros que queria. Ela vivia em uma cidade bem pequena e humilde no interior de São Paulo, cujo maior prédio, para a sua sorte, era uma biblioteca pública de três andares. O edifício era bastante antigo, precisando de reformas, mas dentro dele havia um universo de livros e mais livros, de todos os gêneros e tamanhos. Marília passava todo o seu tempo livre lá, ao ponto de ter se tornado sua segunda casa.


  Seu lugar preferido para ficar e passar horas lendo ininterruptamente era uma larga estante que continha somente velhos, usados e maravilhosos livros de terror. Cada um deles havia passado por dezenas de mãos diferentes e conhecido várias pessoas, diversas vidas. Devia ser isso o que ela mais gostava em bibliotecas e sebos: os livros compartilhados traziam resquícios da essência do último leitor, como um lindo acréscimo às histórias neles impressas.

  Em uma tarde chuvosa, Marília se abrigava entre as pilhas de livros, como de costume. Ela procurava em sua estante favorita por alguma obra de ficção que ainda não tivesse lido. De repente, um livro de capa preta pareceu se destacar entre os outros. Dava a impressão de ter décadas de idade, as beiradas estavam se desfazendo, mas ainda era possível folheá-lo perfeitamente. A lombada desbotada dizia apenas: "Adelaide", em letras de fôrma brancas. Por alguma razão misteriosa, o nome do autor era omitido.

  Marília se interessou de imediato, afinal não é todo dia que se vê um livro com nome de mulher. Ela quis saber quem era essa tal de Adelaide e qual era a história que teria a revelar, portanto puxou o exemplar para si, sem hesitar em deixar uma lacuna vazia no espaço onde ele estava.

  A ilustração de capa era apenas um espelho de moldura antiquada, porém não era possível ver reflexo algum nele. O vidro parecia embaçado e leitoso, como se coberto pelo vapor de um banho quente. A imagem lhe provocou um calafrio estranho, não de medo, mas de intriga, como se ela pressentisse que "ali tinha coisa". Ela virou o livro em busca de alguma sinopse, porém ali não havia nada além da predominante cor negra, o que é claro que atiçou sua curiosidade.

  Ela abriu o livro avidamente, e ficou mais do que decepcionada quando se deparou com cerca de 200 páginas, todas completamente em branco. Sentindo a empolgação inicial murchando dentro de si, Marília chegou à conclusão de que aquele era na verdade um caderno de desenhos que alguém, por algum motivo, havia abandonado ali entre os livros... Isso explicaria a ausência da autoria.

  Mesmo assim, a garota decidiu leva-lo consigo para casa. Estava atraída pelo livro e algo insistia em lhe dizer que havia informações ocultas entre aquelas estranhas páginas virgens. Talvez, quando o examinasse com mais cuidado, encontraria desenhos e registros feitos há muito tempo por uma pessoa desconhecida. Isso seria legal.

  Chegando em casa, jogou a mochila em cima de uma cadeira em seu quarto, esquecendo o livro lá dentro, e foi cuidar de seus afazeres. Naquela noite, houve um apagão. Marília acendeu uma vela e foi dormir, torcendo para que quando acordasse a energia elétrica já houvesse retornado. Deixou a vela acesa na mesinha de cabeceira, e assim que se deitou, seu pé esbarrou em um objeto frio que caiu no chão, emitindo um som inconfundível de papel amassado.

  Era o livro. Alguém havia colocado-o sobre o cobertor que forrava a cama, aberto bem no meio, embora ela tivesse certeza de que o havia deixado seguro dentro da mochila. Ignorando esse mistério, ela decidiu pega-lo mais uma vez, pois ainda não se conformara com o inexplicável vazio das folhas amareladas. Aproximou a chama trêmula do pavio para poder ler melhor, caso ali houvesse algo a ser lido. Sentia que não conseguiria dormir antes de dar uma segunda olhada naquele incomum "caderno de desenhos".

  Abriu o livro numa página aleatória e teve a impressão de ter vislumbrado algo ali. Quase que por instinto, segurou o papel entre seus dedos, erguendo-o levemente. A luz mortiça originária da vela filtrou-o, e Marília, com seus olhos castanhos arregalados, finalmente foi capaz de ver... Uma única linha estava impressa ali. Parecia tratar-se de uma fala de diálogo comum, com o travessão e tudo o mais, porém era estranho o fato de estar sozinha, perdida no meio do vácuo daquela página, como se esperasse por uma resposta.

  - Quem está aí? - Chamou Adelaide.

  Marília franziu o cenho. Seria aquele algum erro de digitação, em um livro defeituoso? Ela não queria acreditar na única justificativa racional. Murmurou consigo mesma, sem perceber: "Que estranho..." Ela costumava falar sozinha quando pensava não haver ninguém mais para ouvi-la. Mas daquela vez, havia.

  Diante de seus olhos incrédulos, as palavras simplesmente se formaram, como se estivessem sendo digitadas no mesmo segundo em que foram ditas, por alguma máquina de escrever invisível:

  - Que estranho... - Marília sussurrou em resposta.

  De tão assustada, ela empurrou o livro bruscamente até o outro lado da cama, querendo manter distância daquelas palavras possuídas. Mesmo de longe, Marília pôde ver mais letras se formando sozinhas. Ela não sentia mais temor, apenas uma curiosidade arrebatadora que forçou-a a se aproximar. Estreitou os olhos para enxergar, evitando qualquer contato físico com aquela coisa.

  - Estranho é eu ter com quem conversar. Faz tanto tempo... - Adelaide sorriu melancolicamente. Ela podia ver a silhueta da nova amiga através da espessa névoa. - Por favor, não tenha medo. Eu sei que você também sente falta de uma companhia.

  Diante daquilo, a garota nem esboçou uma reação. Calmamente fitou o escuro que a cercava além do frágil círculo de luz e pensou um pouco. Se aquilo fosse real, a medida mais inteligente a tomar seria queimar o maldito livro e depois chamar um padre para exorcizar as cinzas. Mas caso fosse um sonho, o que lhe parecia mais provável, era um daqueles dos quais ela não queria acordar para ver o que acontecia no final. Como qualquer menina imaginativa fascinada por terror, Marília tinha pouquíssima noção do perigo. Novamente, ela alcançou o livro com suas mãos pequenas e levantou-o até que ele ficasse na altura de seu rosto, sem conseguir conter um leve sorriso de excitação.

  - Tudo bem com você? - Marília tagarelou com as páginas como se estivesse diante de uma pessoa. - Meu nome é Marília.

  - Estou melhor agora. E eu sei qual é o seu nome, assim como você sabe o meu. Está tudo escrito. - Adelaide explicou com sua voz suave e doce.

  Marília sabia exatamente com a voz de Adelaide soava, embora não precisasse usar de sua audição. A sensação não era muito diferente daquela de estar imersa em uma leitura... A única peculiaridade era que tudo estava mais nítido. Sem desviar o olhar do livro mágico, ela sentia como se sua mente estivesse fervilhando de lembranças súbitas, daquelas que nem sabemos de onde vem e que surgem sem aviso algum.

  - Sabe... Faz anos que estou enfurnada lá naquela biblioteca. O cheiro de mofo é horrível. E ela fica assustadora à noite. - Adelaide desabafou, suspirante. - Agora que já tenho uma nova amiga, a única coisa que poderia melhorar seria conhecer novos lugares. Você me leva para passear? Prometo que ninguém irá sequer reparar em mim.

  - Claro! Minha vida não é das mais interessantes, mas tenho muitos assuntos dos quais falar. Você gosta de ler?

  - Eu gostava... Mas não tenho muitos livros. - Vinda da boca de Adelaide, a afirmação soou mais como um pedido. Seus olhos cintilavam esperançosos.

  - Pode deixar que eu te empresto os meus! - Marília sorriu, embora não fizesse a mínima ideia de como compartilharia suas leituras com a menina impressa. Naquele ponto, ela não duvidava da possibilidade de mais nada.

  Adelaide retribuiu seu sorriso, revelando dentes brancos e alinhados como pérolas. Era uma jovem bonita, mas sempre procurava esconder seu rosto.

  - Escuta, preciso dormir. 

  Marília desviou o olhar por um segundo. Estava sentindo uma agonia estranha.  O torpor gostoso que a preenchera agora há pouco se esvaía, e seu inconsciente parecia tentar alerta-la de algo. Devia ser apenas sono. Já passava de meia-noite.

  - Ah, tudo bem. Está tarde mesmo. Eu tenho insônia. - A alegria momentânea de Adelaide desvaneceu, e ela voltou a ter aquela expressão meio triste que parecia ser sua habitual.

  - Boa noite, Adelaide. Gosto muito do seu nome.

  - Obrigada. Boa noite. - A garota misteriosa murmurou e baixou a cabeça.

  Quando Marília finalmente afastou o livro, estava com a visão embaçada. Piscou com força e agarrou a vela, cuja cera havia derretido pela metade e sujado toda a madeira da cabeceira. Sabia que aguentaria um esporro por isso. Carinhosamente posicionou o livro dentro de sua mochila. Levaria Adelaide consigo para o colégio. Provavelmente aquilo aliviaria a solidão esmagadora que sentia quando estava cercada por aquelas pessoas arrogantes e iguais. Voltando à cama, apagou a pequena chama e dormiu tão rápido que não soube se foi um desmaio.

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