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segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Misericórdia


  As pessoas não acreditam quando eu digo que vim de uma família extremamente católica e conto sobre como minha mãe me obrigava a copiar trechos da Bíblia ao me deixar de castigo. Deve ser por causa do meu desprezo quando o assunto é religião. Eu era aquela ovelha negra e atéia, que se recusava a ir "comungar com Deus" todo domingo apenas para contrariar os parentes.

  No íntimo, até acredito na existência de um Criador, mas quando você passa a sua infância inteira cercada por imagens religiosas e leva uma bronca sempre que desobedece a algum "valor cristão", termina criando um certo ódio. Na verdade, acho que só entrei em uma igreja duas vezes na minha vida inteira. A primeira, foi no dia do meu batismo, quando eu era um bebê inocente e sem capacidade de escolha. A segunda, foi quando minha mãe morreu.

  Embora sua mania de rezar antes das refeições me irritasse, eu a amava, e achava que, por respeito a ela, eu deveria esquecer meus preconceitos e homenagear suas crenças pela primeira e última vez.

  O funeral foi realizado na igreja de Nossa Senhora da Misericórdia, a mesma que frequentamos desde sempre, ou melhor, eles frequentavam e eu evitava. Estava anoitecendo quando o padre acendeu as velas ao redor do caixão aberto e deu início a seu discurso fúnebre e ensaiado.

  - Louvemos hoje a alma de nossa querida Anna, que ela possa encontrar seu caminho até o Reino dos Céus. O Senhor está entre nós neste momento de sofrimento e redenção...

  Para mim, aquelas palavras não faziam o menor sentido, mas era reconfortante ouvir a voz solene do Frei Lourenço elevando-se acima dos soluços e gemidos. Eu o conhecia desde criança e gostava bastante dele. Sabia que ele estava realmente triste pela morte e que era um homem bom e santo, apesar dos boatos recorrentes sobre as fotos de pornografia infantil que alguém alegava ter encontrado em meio a seus pertences. Ele sempre me dizia que Deus me encontraria mesmo se eu não o procurasse, e eu sempre tentava acreditar.

  Tudo parecia escuro e enevoado, como em um sonho triste. Eu me sentia uma espectadora, observando aquela cena deprimente sem jamais participar. Nenhuma lágrima escapava de meus olhos, eu apenas mantinha a cabeça baixa e o rosto inexpressivo. Estava sofrendo, é claro - mas era boa em não demonstrar. Se eu me entregasse ao luto, os amigos e parentes ali viriam me consolar, e não havia nada que eu odiasse mais do que aquilo. Tudo o que eu queria era que aquele evento chegasse logo ao fim, para que eu pudesse voltar à minha casa solitária e lidar com o meu pesar, do meu próprio jeito.

  Percebi que ainda estava segurando o buquê de rosas brancas que trouxera, sufocando os ramos entre meus dedos, e me levantei para deixa-lo junto ao corpo. Eu não queria olhar diretamente para o cadáver de minha mãe. Antes do câncer definha-la, ela era uma mulher gentil e bondosa, sempre alegre, e não havia quem não simpatizasse com ela. Eu tentaria manter a imagem dela viva e saudável em minha memória, ter que olhar para seu rosto pálido e gelado não iria ajudar. Mas ela não estava mais ali. Sua essência havia partido para outro lugar, e eu esperava que fosse algum tipo de paraíso, pois ela merecia.

  Virando o rosto, coloquei as flores próximas a seu peito imóvel, e rapidamente me afastei. Eu podia sentir os olhos das pessoas em cima de mim: Qual é o problema dela? Parece que não amava a própria mãe... Parece que não tem alma... Cerrei os punhos, sentindo as unhas ferirem a pele macia de minhas mãos.

  Voltei ao banco de madeira desconfortável no qual estava sentada e continuei com o olhar perdido no vazio. Senti quando uma mão tentou repousar em meu ombro e imediatamente me esquivei. Apoiei a cabeça entre as mãos e fingi rezar. Aquilo sempre me pareceu uma maneira mais aceitável de falar sozinho: Se alguém estiver ouvindo... Eu não tinha nada a conversar com um Deus que toma de nós as boas pessoas e deixa apenas as cruéis e hipócritas. Ainda assim, continuei naquela posição, de olhos fechados, tentando ignorar a tudo e todos.

  Percebi vagamente quando o burburinho ao meu redor se reduziu aos poucos, sendo dominado pelo silêncio tétrico. O cheiro pungente de incenso alcançou minhas narinas. As luzes diminuíam através de minhas pálpebras. Abri os olhos. O local estava deserto. Será que eu caíra no sono?

  As velas recém-apagadas esfumaçavam, irritando minha vista. A única iluminação provinha do brilho vindo da rua que atravessava os vitrais foscos. Quase não era possível enxergar o caixão, e por isso eu era grata. Levantei com um suspiro e acendi a lanterna do celular para caminhar até a saída. Então me deparei com o pesado portão, fechado e trancado a cadeado. O funeral parecia ter terminado há muito tempo, e simplesmente me esqueceram dentro da maldita igreja. Eu estaria presa até o amanhecer.

  - Puta que pariu, era só o que me faltava! - Berrei, e o palavrão ecoou por toda a Morada do Senhor, mas ninguém pareceu ter ouvido. Finalmente permiti que as lágrimas transbordassem, porém sabia que ficar ali parada chorando não mudaria nada.

  Decidi voltar para onde estivera, deitar no banco e tentar dormir. Éramos apenas eu, a escuridão e minha mãe morta. Não seria uma noite agradável, mas antes que eu percebesse já teria terminado. Meus passos ecoaram pelo piso de mármore da igreja. Abracei meu próprio corpo. Como aquele lugar ficava frio... A lanterna não era de muita ajuda, mas sem ela eu estaria tropeçando.

  Na verdade, talvez minha pequena fonte de luz piorasse ainda mais a situação - pois ela possibilitava que eu reparasse no quanto havia estátuas de santos espalhadas por todo o lugar. Elas eram em tamanho real, vestidas com roupas de verdade. Dizem que em algumas delas havia sido costurado cabelo humano. Seus rostos eram pintados com realismo perturbador. Algumas tinham o olhar baixo e as mãos em oração, outras reviravam os olhos para o céu com expressão de êxtase. O contraste entre trevas e luz dava à todas o mesmo ar macabro. Senti um calafrio e tentei não desviar os olhos de meu caminho, perguntando-me como os fiéis conseguiam encontrar conforto em um lugar tão austero.

   Finalmente alcancei o banco e usei minha bolsa como travesseiro. Deitei o mais encolhida possível, cerrei as pálpebras e tentei levar os pensamentos para longe dali. Gostaria de poder dizer que o silêncio era ensurdecedor e sinistro - mas foi nesse momento em que comecei a ouvir um ruído distante. Apenas o som de um órgão sendo afinado, a melodia monótona de uma tecla sendo pressionada de cada vez. Isso renovou minhas esperanças, afinal, se estavam mexendo no instrumento, era sinal de que eu não estava completamente sozinha. Após mais um segundo ouvindo para garantir que não era delírio meu, gritei uma última vez.

  - Tem alguém aí?! - Sabe, essa é uma das muitas coisas que você não deve dizer se estiver preso em um lugar assustador. Porque no fundo você não quer que alguém esteja com você. Descobri esse fato logo depois, quando ouvi o rangido de algo se arrastando na área do altar-mor, seguido por uma leve pancada no chão.

  Meu reflexo foi sentar e forçar a vista para enxergar naquela direção. Não parecia ser nada. Com certeza era apenas meu medo distorcendo as coisas - mas eu poderia jurar que a estátua em homenagem à Nossa Senhora da Misericórdia havia descido de seu pedestal. Fora isso, ela estava exatamente como sempre foi. Uma silhueta alta, coberta por um longo manto que aparentava ser preto naquele escuro, e tinha os braços abertos em benção. Senti vontade de xingar a Virgem inanimada. Não, eu não permitiria que meu temor irracional pregasse peças em mim.

  Porém não seria possível negar por muito mais tempo. Parecendo ter origem no mesmo ponto do barulho, uma voz suave e feminina começou a entoar um cântico, acompanhando a música sem ritmo vinda de algum lugar, que parecia ficar cada vez mais alta. Eu não entendia meia palavra de latim, ainda assim, podia compreender perfeitamente a letra, como se fosse direcionada a mim.

  - Redimit tribulatione animæ tuæ. Ne sileas Domine. - "Redime tua alma. Redime ao Senhor." - A voz repetia incessantemente, e logo percebi que era como se a imagem estivesse cantando, embora ela parecesse imóvel e isso não fizesse o menor sentido.

  De maneira quase imperceptível, a estátua começou a arrastar seus pés de madeira ao longo do piso. Eu ficava encarando, estática. Era um pesadelo e eu iria acordar, enquanto isso, não poderia fazer nada. Ela se movia com um jeito muito lento, porém determinado, e só parou quando alcançou o caixão. O corpo de minha mãe parecia irradiar um brilho efêmero e suas pálpebras tremiam como se fossem se abrir. Aos poucos, a imagem moveu os braços da posição original e apoiou uma das mãos rígidas sobre o peito do cadáver, exatamente em cima do coração.

  - A mortuis revertetur! - "Dentre os mortos há de retornar!" - Todas as outras estátuas exclamaram em coro. Estavam todas vivas, assim como minha mãe, que se ergueu de seu leito com tanta naturalidade quanto se estivesse acordando. A estátua segurou a mão dela e a guiou em minha direção. Meu joelhos tremiam, mas eu não poderia me mover.

  Demoraram bastante para me alcançar, e eu poderia ter fugido, mas uma sensação estranha me dominava. Era como se minha própria alma estivesse tentando deixar o corpo. Minha mãe ergueu a mão pálida e tocou meu rosto suavemente, fazendo o sinal da cruz, da mesma maneira como ela fazia todas as noites ao me colocar para dormir. O toque gelado foi minha última sensação antes de perder a consciência.

  Retomei os sentidos ao ouvir uma voz abafada, gritando, também em latim, mas eu não tive medo pois a reconhecia como sendo a do padre. A dor pungente na minha cabeça me impedia de raciocinar. Eu havia desmaiado no mármore, aos pés da Nossa Senhora. Abri os olhos com alguma hesitação e fiquei observando a tudo, sem ousar me mover. Frei Lourenço erguia um crucifixo de prata e berrava com toda a sua energia, dirigindo-se a algo que eu não podia ver, embora soubesse o que era. Uma mão de madeira avançou rapidamente e arrancou o crucifixo, atirando-o longe. O religioso não reagia enquanto a imagem de uma santa chorando sangue agarrava sua garganta.

  - Perdidit Dei misericordiam suam. Perdidit Dei misericordiam suam. Perdidit Dei misericordiam suam. - "Deus perdeu a misericórdia." - A estátua sussurrava sem parar enquanto o esganava. Finalmente me levantei e me aproximei, trêmula, mas tentando salvar o padre.

  - Não! - Ele implorou em um fio de voz. - Eu devo lidar com isso sozinho. Fuja...

  Recuei. Jamais alguém havia me pedido algo com tanto desespero. Eram as últimas palavras dele. Senti uma carícia gelada vinda de trás de mim - era o vento noturno. O grande portão estava aberto, a luz da lua iluminava a tudo e nada bloqueava meu caminho abençoado para a saída. Corri sem olhar para trás, tropeçando em meus próprios pés.

  Não sei como, mas consegui chegar em casa. A primeira coisa que fiz foi olhar meu reflexo. Alguém - ou algo - havia talhado a marca de uma cruz em minha testa, que sangrava profusamente e era a origem daquela dor. Dói até hoje. Deixei crescer uma franja para esconder o que eu chamo de "a marca do Espírito Santo". Eu não chamaria isso de milagre.

  Na manhã seguinte, os sinos da igreja tocaram em seu tom mórbido para anunciar mais um falecimento. Frei Lourenço havia sido encontrado enforcado em seus aposentos. A justificativa óbvia era suicídio, afinal, não havia nenhum sinal de arrombamento na igreja ou na paróquia. Em vez de um bilhete, encontraram todas as fotos de pornografia infantil espalhadas sobre a escrivaninha. Parece que ele não aguentava mais viver com suas perversões.

  E quanto a mim? Nunca fui uma pessoa muito impressionável. Mas não há como negar que toda vez em que passo por uma igreja, sinto um arrepio percorrer minha espinha. Como alguns têm um mau pressentimento ao cruzar cemitérios.

6 comentários:

  1. Mas que história massa.agora vou pensar duas vezes antes de entrar no cemitério. Ainda mais com estátuas..

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  2. ''pornografia infantil'' historia zoeira essa

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  3. Weeping Angels cara. Weeping Angeles...

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  4. Legal gostei ' não gosto de santos e agora não mas mesmo kkkk😉😊

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