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sexta-feira, 9 de setembro de 2016

O Fim de Charlotte


  Como é possível ter medo de algo e, ainda assim, sentir-se fortemente atraída por ele? Eu não sei porque concordei em seguir aqueles ruídos horríveis naquele dia. Queria apenas que nunca tivéssemos ido à praia.

  Estávamos sentadas em cadeiras de jardim no lado de fora do pequeno chalé que nossa família mantinha no litoral, quando Charlotte virou para mim e disse que podia ouvir gritos vindo da praia. Era uma dessas tardes incomuns em que o sol saía de trás das nuvens e neblina.

  - É claro que você está ouvindo gritos. Tem sempre algo acontecendo com você, algum tipo de drama. Tenho certeza de que é apenas o vento ou algo assim. - eu disse a ela.

  Deixei de lado meu livro e inclinei a cabeça na direção da água. Não conseguia ouvir nada além da maré. Havia nuvens pesadas vindo do oeste e o vento de fato estava um pouco cortante, causando arrepios nas minhas pernas.

  Ela fez uma careta para mim. Charlotte me odiava. Ela me odiava desde o dia em que eu nasci. Já havia me dito isso. Dizia que havia algo de errado comigo, que eu era uma criaturinha má. Nossos familiares dizem que após o meu nascimento, ela parou de falar. Ela tinha três anos e não disse uma palavra por dois anos. Quando lhe perguntamos porque ela não falava, ela respondia que era para punir nossos pais por terem tido outra filha.

  Seus olhos castanhos semicerraram quando ela continuou a falar:

  - Ouça. Estou ouvindo de novo, é como... uma lamúria.

  Eu a odiava também. Passei a vida inteira tentando matá-la. Quando éramos muito pequenas, eu a empurrei do alto da casa da árvore da nossa vizinha Franny. Ela apenas quebrou o braço. Ela contou aos nossos pais que eu a havia empurrado, mas eu disse que fora um acidente. Como Franny não estava olhando, recebi o benefício da dúvida.

  À medida em que eu crescia, passei a tentar principalmente envenená-la. Aprendi sobre envenenamento por grafite na escola e enfiei um lápis nela. Causei problemas aos meus pais por isso. Então, tentei ser mais criativa. Por um mês inteiro, coloquei água sanitária no suco dela. Só um pouquinho de cada vez. Ela começou a ficar bem doente e ninguém sabia o motivo. Fiquei com medo de ser pega e parei. Cerca de um ano depois, me interessei por plantas venenosas.

  Ricinus communis, Abrus precatorius, Datura strumonium, Nerium oleander, Digitalis purpurea. Então ela voltou a adoecer. Passava longas horas nauseada no banheiro, para em seguida desabar apática na cama. Nossos pais começaram a se preocupar com a possibilidade de ela ter algum tipo de condição médica, e passaram a levá-la a médicos e mudar sua dieta. Ninguém descobria o porquê de ela estar sempre tão mal. Acho que ela começou a suspeitar de que eu tinha algo a ver com aquilo, e não me deixava mais preparar-lhe xícaras de chá nem servir-lhe copos de leite.

  - Vamos, Connie, vamos até lá ver o que é. - disse ela, pulando da cadeira e andando até o limite do jardim, onde a terra descendia por 10 metros até a costa íngreme abaixo. Pensei em como seria fácil empurrá-la gentilmente.

  O short cortado revelava suas pernas bronzeadas e seu cabelo loiro pendia até o meio das costas. Ela tinha quinze anos e as pessoas diziam que era a mais bonita. Se ela era a mais bonita, não sei no que aquilo me tornava, isso ninguém dizia. Eu era baixinha e mantinha meu cabelo castanho cortado curto. Eu preferia ficar dentro de casa e ler, enquanto ela era uma atleta. E dava para ver os músculos em suas pernas, de tanto que ela havia corrido enquanto jogava lacrosse no último verão.

  Tínhamos chegado tarde da noite anterior. Todo verão, passávamos duas semanas no litoral. Quando as temperaturas diminuíam no continente, nossos pais procuravam um refúgio no calor. Era sempre enlouquecedor para mim. Eu não aguentava passar tanto tempo longe do mundo com apenas Charlotte fazendo companhia.

  Aquele era um lugar realmente antigo que minha mãe herdara da tia-avó. Gostava de chamá-lo de "rústico". Era quase acampar. Não havia luz elétrica, apenas um gerador que meu pai carregava com gás que trazia da cidade. E havia um depósito cercado por arbustos de flores azuis, ligado ao chalé por uma trilha.

  Como de costume, a noite em que chegamos da cidade estava fria e enevoada. Eu lembrava dos anos anteriores como a neblina parecia surgir todos os dias à mesma hora à tarde. Era como um relógio, e durante a chegada, a viagem durou mais do que esperávamos, pois a visibilidade estava muito baixa. A neblina inundava toda a estrada de terra pelos próximos quilômetros à frente, de forma que meu pai precisava praticamente se arrastar.

  Quando finalmente chegamos no lugar e o pai desligou o carro, nos vimos cercados pela escuridão. Entramos no chalé e fomos recebidos pelo cheiro de podridão e bolor. Embora fosse verão, acendemos o fogo no velho fogão após meu pai carregar o gerador. Comemos sanduíches de creme de amendoim com geleia e pegamos nossos sacos de dormir. Adormecemos rapidamente.

  A cada ano, quando retornávamos, precisávamos limpar a poeira e o cocô de rato que cobriam todas as superfícies. Às vezes, animais invadiam o chalé quando ele ficava vazio. Guaxinins - até ursos - saqueavam qualquer estoque de comida que tentássemos guardar para nossa próxima visita. O lugar ficava uma bagunça. Especialmente na cozinha, ou no que chamávamos de cozinha. Eram apenas algumas prateleiras de madeira e armários sujos. Usávamos um minibar de geladeira e um fogareiro para cozinhar.

  Durante a manhã, deveríamos ficar limpando enquanto nossos pais saíam para comprar suprimentos. Eu estava pensando sobre como ingerir fezes de rato deve deixar você bem doente, quando o sol começou a despontar por entre as nuvens. Foi então que decidimos dar uma pausa e colocar as velhas cadeiras do lado de fora.

  Pensei no ano passado, sobre como toda manhã Charlotte saía para caminhar sozinha. Como ela pegava os ossinhos de pássaros marinhos e peixes que eram trazidos pelo mar até as rochas e ficavam espalhados pelo que chamávamos de nossa praia, pequeninas espinhas de peixe limpas pelas gaivotas e esbranquiçadas pela água salgada. De vez em quando ela corria para casa empolgada por causa de um diminuto crânio de pássaro ou pequenas vértebras de peixe que se assemelhavam à borboletas. Ela trazia as borboletinhas e crânios até a varanda e os deixava no parapeito. E eu os atirava na lama. Às vezes eu os pisava e reduzia a pedacinhos.

  - Não vou a lugar nenhum com você. - retruquei para ela.

  Então eu ouvi - um grito. Tinha certeza de que havia sido um grito. Olhei para Charlotte e ela olhou de volta. Compartilhamos um momento e fizemos contato visual, pela primeira vez, não cheias de ódio, mas de medo.

  - Ok, vamos. - eu disse. Peguei um casaco com capuz e nós saímos pela trilha estreita até o afloramento pedregoso que chamávamos de praia. Cascalho se derramava pelo caminho enquanto as solas dos meus tênis se esforçavam para se manter no chão. Corremos pela trilha ladeada por margaridas.

  Viramos num canto, sem fôlego, e paramos imediatamente. Havia dois garotos sentados em pedras próximas à água. Eles estavam fumando cigarros e seguravam garrafas de cerveja. Lembro-me de ter pensado, quem ainda fuma cigarros? Eles pareciam ter cerca da idade de Charlotte. Parecia haver algo estranho em relação a eles, mas eu não saberia dizer o quê. Talvez fosse apenas o fato de que eles estavam diante de nós em nossa prainha deserta, ou talvez porque eles pareciam ter simplesmente se materializado ali.

  Eles se pareciam com muitos dos meninos da nossa escola. Vestiam camisas brancas e calças cáqui. Um era alto, tinha cabelo escuro e olhos azuis. O outro era mais baixo, com a pele mais clara e tinha cabelo loiro desgrenhado em torno das orelhas.

  A maré estava subindo e eu podia sentir as gotículas no meu rosto quando as ondas quebravam nas pedras negras. O vento batia e a neblina aumentava, e eu tive a impressão de que podia ouvir algo, mas já não soava como gritos. Parecia música tocando. Parecia estar tendo uma festa muito longe, com vozes, risadas e música.

  - O vocês estão fazendo aqui? - Charlotte perguntou a eles.

  - Ei, quer uma cerveja? - o loiro me perguntou, erguendo uma garrafa marrom.

  - Não, não queremos sua cerveja. Como vocês chegaram aqui? - questionei de volta.

  Com doze anos, eu ainda não tinha interesse em meninos. Eu tinha poucas amigas na escola e elas não eram do tipo que ficavam doidas por causa de garotos, como Charlotte e sua turma eram. Naturalmente, eu desconfiava daqueles dois.

  - Somos fantasmas. Venha sentar com a gente. - disse o menino mais alto e moreno. Seu amigo riu.

  - Besteira. - Praticamente cuspi nele.

  O único acesso à praia era a trilha que começava nos fundos do nosso chalé. Nós estivemos sentadas ali por mais de uma hora e não vimos ninguém passar.

  Então, algo estranho aconteceu. Charlotte caminhou lentamente até o garoto da mão erguida e pegou a cerveja dele. Charlotte nunca bebia. Ela abominava álcool e o tipo de gente que participava daquelas coisas. Ela pegou a cerveja, que já estava aberta, e deu um grande gole. Então ela foi até bem perto do garoto, olhou-o nos olhos de uma forma que eu consideraria sexy se não fosse a Charlotte e disse:

  - Qual o seu nome?

  Então eu peguei a cerveja do outro garoto. Ele sorriu e senti algo se aquecer dentro de mim. Bebi a cerveja. Depois bebi outra. Não estava acostumada. Minha cabeça começou a girar de um jeito que não era desagradável. Charlotte passou o tempo todo sentada ao lado do garoto de olhos azuis-metálicos e cabelo preto, e eles ficavam trocando sussurros.  Perguntei-me o que eles poderiam estar dizendo um para o outro. É difícil dizer quanto tempo se passou naquilo. Charlotte ficou absorta em uma conversa silenciosa com aquele garoto.

  Então ela levantou e começou a ir na direção da água.

  E eu a observei entrar no oceano. Fiquei confusa e a chamei:

  - O que você está fazendo? Ficou louca? A água está congelante.

  O mundo começou a dar voltas e eu pensei em todas as vezes em que a quis morta. Pensei nas vezes em que eu tentei matá-la. E eu não queria que ela se fosse. Minha cabeça estava pesada por causa da cerveja, mas eu tentei chamá-la de novo. Parecia que eu estava sonhando e não conseguia gritar. Não sei se consegui articular palavras ou se ela não podia me ouvir.

  Ela apenas continuou andando. Estava frio e escuro agora. Suas pernas estavam submersas, seus sapatos ficariam encharcados. Seu cabelo pendia até o meio das costas. E eu estava gritando o seu nome, gritando para ela parar. Para voltar para mim.

  Uma onda monstruosa atingiu a enseada e ela se foi. Todos se foram, Charlotte e os garotos. Restava apenas eu, sentada sozinha na praia.

  Estava com tanto frio.

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