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sexta-feira, 8 de julho de 2016

A Cantoria



  Durante a infância, eu tinha muito medo de ficar sozinho. Não tenho certeza de como isso começou, nem de quando exatamente passou. Agora eu tenho um cachorro, um vira-lata que eu adotei - então, tecnicamente, não fico sozinho no meu apartamento, mesmo quando meu colega de quarto está fora. Mas de volta ao ponto; quando eu era criança, ficar sozinho me deixava muito assustado. Era um medo irracional, de forma que apenas imaginar minha mãe me deixando sozinho em nossa casa me fazia chorar desesperadamente até que eu a visse de novo.

  Nós morávamos em uma casa pequena que tinha dois andares e nenhum quintal. Havia um jardim, porém, um pequeno espaço separado por arbustos dos limites das casas vizinhas. Minha mãe praticava jardinagem ali, plantando vegetais durante o verão para que pudéssemos economizar nas compras. O primeiro andar tinha três quartos. Quatro, na verdade: a cozinha e a sala de estar eram basicamente o mesmo quarto, divididos apenas por uma mudança de tacos de madeira para revestimento de azulejos. O segundo cômodo era um cubículo que chamávamos de banheiro, com uma pia e um vaso sanitário. O terceiro era o de minha mãe. No andar de cima, havia dois quartos. Meu quarto, que eu originalmente dividia com meu irmão até ele se mudar, e um banheiro maior com uma dessas banheiras antigas, do tipo que se ergue sobre quatro pernas e tem um chuveirinho preso a ela e não à parede.

  Não havia muitas janelas na casa, mas as poucas era muito largas e permitiam a entrada de bastante luz durante o dia. Não tínhamos cortinas porque precisávamos do dinheiro para outras coisas, mas minha mãe pregava lençóis velhos cobrindo todas as janelas do primeiro andar, sempre antes de irmos dormir. Para uma ilusão de segurança, eu acho. Uma ilusão, devido ao tipo de vizinhança na qual vivíamos; se alguém quisesse nos observar de noite, descobriria um jeito, com as janelas cobertas ou não.

  Entretanto, no andar de cima, acho que ela pensava que como eu só entrava no meu quarto para dormir - porque eu não gostava de ficar sozinho lá - não havia necessidade de cobrir minha janela inicialmente, e então, ela terminava não cobrindo nunca. Talvez não tivéssemos mais lençóis sobrando, ou talvez fosse porque era impossível alguém me ver a não ser que eu ficasse parado bem diante da janela. Não havia nenhuma cobertura abaixo na qual alguém poderia se apoiar para subir, e a janela não abria de qualquer forma. Havia sido lacrada com tinta em algum momento antes de nos mudarmos para lá.

  Eu era uma criança carente e provavelmente irritante devido ao meu medo e à minha necessidade constante de saber onde minha mãe estava. Eu também era encrenqueiro desde que meu pai fez as malas e desapareceu quando eu tinha cinco anos. Estava sempre aborrecido e furioso, mas não de uma forma que eu pudesse compreender com uma mente tão infantil - então eu extravasava através de chiliques e quebrando as coisas, rabiscando no que não devia, jogando os cosméticos de minha mãe descarga abaixo quando ela estava distraída.

  Piorou ainda mais quando meu irmão foi embora. Isso também concretizava o medo de que se eu não pudesse ver minha mãe, ela nunca voltaria. Acho que eu tinha problemas psicológicos, ansiedade de separação, esse tipo de coisa - mas éramos pobres demais para fazer algo a respeito, mesmo que minha mãe tenha percebido o quão sério era aquilo em determinado ponto.

  Por eu ser tão carente e irritante, minha mãe inventou uma maneira para que eu sempre soubesse onde ela estava. Durante o verão, sempre que eu estava em casa, passava o tempo ouvindo-a cantando enquanto ela realizava tarefas domésticas. Enquanto limpava, cozinhava ou costurava, ela cantava alto. Praticando jardinagem, construindo móveis improvisados para preencher nossa casa, trabalhando de babá, ela cantava. Enquanto sua voz fosse um som constante, e enquanto ela continuasse cantando, eu não teria medo de que ela desaparecesse; eu sentava em meu quarto e brincava com meus brinquedos, ou desenhava, ou lia e praticava minha escrita e me sentia contente e seguro. Ela tinha uma voz encantadora, e ainda tem, apesar de não cantar muito hoje em dia. Ao menos não perto de mim.

  Embora a sensação de segurança sempre sumisse imediatamente quando ela parava para tomar fôlego ou para iniciar uma nova canção. Naquele curto período de tempo - cinco segundos, no máximo - em que a cantoria cessava, um pânico que eu nem consigo descrever direito oprimia meu peito. Se você já dirigiu, é aquela sensação de quando alguém aparece na sua frente e você precisa freiar rápido para evitar um atropelamento. É aquela sensação de quando seu animal doméstico sai correndo pela porta da frente. É como quando você vira a cabeça por um segundo, e ao voltar a olhar, descobre que seu bebê desapareceu em um instante. Aqueles segundos passavam rápido, mas o pânico intenso e ardente que eu sentia, a certeza absoluta de que algo terrível havia acontecido... Isso é o mais próximo que eu consigo de descrever como era. Eu já estive em todas essas outras situações, e elas só representam metade do medo que me dominava quando criança nesses pequenos momentos do dia em que eu não podia vê-la e nem ouvi-la cantar.

  Em um dia específico, o canto dela tornou-se menos reconfortante de ouvir. Não lembro o que era que ela disse estar fazendo. Eu estava tocando uma fita cassete num pequeno rádio que ganhei no meu décimo aniversário, apenas ouvindo superficialmente enquanto ela subia as escadas, dizia algo para mim e depois descia novamente, cantando durante todo o processo. Ouvi a porta da frente abrir, e em seguida fechar, e um segundo depois o canto foi ficando abafado até sumir dos meus ouvidos. Era um som ao qual eu havia me acostumado tanto que se tornara um ruído de fundo a esse ponto. O sol já havia há muito baixado além da vista da minha janela. Quando o rádio cheio de estática parou de tocar a música e o botão de "play" se sobressaiu, eu estava no silêncio.

  Eu me lembro de olhar pela janela, inicialmente confuso por causa do silêncio - porque nunca havia silêncio quando eu estava em casa, especialmente não quando eu estava brincando no andar de cima, e então o pânico me atingiu como um caminhão. Pior que um caminhão, na verdade. O medo fechou meu esôfago e comprimiu meus pulmões, fez meus olhos queimarem enquanto meu corpo gelava e eu não conseguia mais piscar. Eu estava ao mesmo tempo quente e frio, paralisado pelo medo congelante e em chamas enquanto o suor começava a se formar na minha testa, pescoço e palmas. Eu me lembro do momento tão claramente. Recordo do medo, do terror com tanta clareza. Lembro-me das ideias que bombardeavam minha mente, dos pensamentos que cresciam tanto, tão garantidos e em tamanha quantidade que a pressão que eles criavam em minha cabeça não tem páreo para qualquer coisa que eu já tenha sentido desde aquela noite.

  Então, de uma vez só, meus batimentos cardíacos desaceleraram e o medo pareceu se dissipar no ar; o canto havia recomeçado, um som abafado pela janela e pela distância do jardim até o segundo andar. Era uma distância familiar, uma distorção familiar, e eu voltei para meus brinquedos como se nada houvesse acontecido. Ela foi ao jardim, apenas isso - ela não me deixara. Estava tudo bem, tudo bem. Não sei como eu conseguia superar uma sensação tão intensa com tamanha rapidez. Mesmo se alguém me assusta agora, dezesseis anos depois, leva muito tempo para eu me acalmar - com dez anos, eu era durão, eu acho, ou talvez eu só tivesse me habituado a estar sempre com medo.

  Eu abandonei o rádio, após ter ouvido aquela fita repetidas vezes o dia todo, e fui ao armário procurar por minha caixa de lápis de giz de cera grandes, que tinha há cerca de um ano. Eu gostava tanto dela que raramente a usava. Lembro-me disso principalmente porque eu tenho a caixa até hoje - embora tenha perdido o verde, e o azul esteja gasto até a metade - no meu sótão com outras lembranças de infância. Eu gostava tanto deles porque eles não quebravam ao meio nos meus dedos desastrados, e eu podia pressiona-los contra o papel o quão forte quisesse sem medo de que a ponta quebrasse. Eu tinha alguns desenhos meus pregados na minha parede, bem ao lado da minha cama, e alguns estavam no andar de baixo, na geladeira, de forma estereotipada o suficiente.

  Eu peguei os lápis, encontrei as pilhas de papéis brancos, cor-de-rosa e amarelos - centenas de formulários e documentos de alguma empresa que meu pai havia deixado - e trouxe uma pequena quantidade deles para a minha cama. Deixei tudo largado ali, me empertiguei e olhei pela janela antes de começar a desenhar. Eu ainda podia ouvir a cantoria lá fora, embora o sol já tivesse se posto quase completamente e o céu estivesse escuro com apenas uma borda vermelho-alaranjada. Naquela noite, eu iria desenhar um pôr-do-sol. Eu peguei o lápis vermelho e o amarelo, e comecei a fazer as linhas grossas e espalhadas e o círculo torto que representavam o sol poente.

  Enquanto coloria, eu ouvia a canção dela. Era uma que eu nunca havia ouvido antes, mas era definitiva e inconfundivelmente a voz dela cantando. As notas não... se conectavam direito, eu acho. Eu não sei nada sobre canto, ou notas musicais, ou composição nem nada assim, mas eu fiz um amigo no ensino fundamental que tinha um piano de cauda em sua casa. Nós brincávamos com ele, criando música horrível - e a forma como ela estava cantando me lembra agora da maneira como um piano soa quando você toca uma canção com as teclas brancas, e então coloca algumas teclas pretas aleatórias no meio, criando um som bagunçado que não soa nada como música.

  A canção continuou por um longo tempo. Provavelmente eram apenas alguns minutos, mas aquilo era tão incômodo de ouvir que eu finalmente larguei meu giz de cera e sentei na cama. Eu me lembro que aquele era o lápis vermelho. Lembro em detalhes estranhamente vívidos como era aquele desenho. Exatamente quais lápis estava usando. Lembro de descer da cama e ir até a janela. Lembro de olhar para o jardim e chamar por ela. Eu ia pedir para que ela cantasse Für Elise, uma música que na verdade não tem letra, mas que ela inventava as palavras para cantar. Não sei por quê, mas eu realmente gostava daquela música. Preferia ouvi-la cantando a ouvir a versão infantiloide que tocava na minha fita cassete de má qualidade.

  Quando eu olhei para o jardim, os últimos raios solares o iluminavam apenas o suficiente para que eu pudesse ver que ela não estava ali. Sua voz ainda emergia do chão, mas ela não aparecia no meu campo de visão. Era um jardim pequeno - não havia plantas grandes ou móveis que pudessem escondê-la. Porém, eu tinha certeza de que sua voz estava vindo de lá - eu pressionava meu ouvido contra a janela e o som ficavam mais alto. Pressionei minha testa no vidro, tentando olhar diretamente abaixo, mas não para apreciar melhor. Uma pequena parte do jardim estava censurada da minha visão por causa da posição da janela, e eu concluí que era ali que ela devia estar. Ela não estava em casa, sua voz, pelo menos, não estava vindo de dentro.

  Então eu percebi outra coisa. Algo que não fazia sentido nenhum para mim. Nós não tínhamos uma escada, e minha mãe tinha medo de altura de qualquer maneira. Então por que sua voz parecia estar acima do chão? Eu nem tinha certeza inicialmente. Talvez ela estivesse cantando mais alto, ou talvez ela estivesse cantando assim desde o início e eu não tivesse percebido antes porque estava em outro lado do quarto. Parecia uma boa explicação para mim, mas eu não conseguia entender o que exatamente estava fazendo a voz soar ainda mais límpida. Ainda mais próxima de onde eu estava parado. A incerteza aumentou na boca do meu estômago, fazendo-o revirar. Meu coração acelerou, também, e era um medo diferente do que eu sentia quando ela parava de cantar.

  Foi quando eu me dei conta; ela não havia tomado fôlego ou pausado nos últimos cinco minutos. O jardim, quando eu olhei mais atentamente, ainda tinha as ervas-daninhas que eu me lembrava de estarem ali quando eu o reguei naquela manhã. A voz continuava subindo, e não poderia ser uma escada a não ser que alguém a tivesse apoiado de propósito e delicadamente na casa, de forma que eu não ouviria o baque dela batendo na parede. Mesmo se fosse uma escada, era a voz da minha mãe cantando e ela nunca faria algo tão estranho. Se ela precisasse subir no telhado, teria me pedido para sair e ficar observando para o caso dela cair e eu precisar pedir ajuda ao vizinho. Ela era assim.

  A voz ficava cada vez mais alta e menos abafada, mais clara e parecia fazer o vidro vibrar contra minha testa. O canto também pareceu... mudar. As notas, que já soavam desconexas, estavam agora mudando esporadicamente e ficando agudas. Era como se a canção estivesse alterando, pulando de nota em nota rápida e aleatoriamente, e estava muito, muito estridente. Era como se ela estivesse lançando qualquer nota que conseguisse gerar como um guincho, algum tipo de grito aterrorizado. E estava se aproximando firmemente da janela do meu quarto.

  Eu dei um passo para trás, afastando-me completamente do vidro. Se isso era minha mãe, meu eu criança sabia que havia algo muito, muito errado com ela. E se não era ela, bem... alguma outra coisa estava muito, muito errada.

  Eu observava a janela com olhos arregalados, sem piscar, e com os lábios secos e rachando pela forma como eu estava quase hiper-ventilando. Este tipo de medo não era aquele medo irracional e incapacitante de minha mãe desaparecer sem vestígios, mas o medo de o que quer que estivesse sob aquela janela. Era um medo racional, e aumentou ainda mais quando eu ouvi o som da porta da frente abrindo e fechando, quase inaudível por baixo daquelas lamúrias de banshee.

  - Querido, estou em casa - pare de gritar! Você está bem?

  A voz da minha mãe subia pelas escadas, seguida rapidamente de seus passos, e o barulho do lado de fora parou completamente. De uma vez só, o som que iria ressoar em minha memória enquanto eu adormecia de noite, o som que invade meus sonhos e pesadelos, o som que eu jamais ouviria novamente cessou e eu me virei para sair correndo do quarto e me lançar nos braços de minha mãe.

  O som oco como uma bola de baseball estilhaçando vidro me causou um sobressalto, e quando o ruído suave e delicado dos caquinhos batendo nos tacos de madeira do chão preencheu o quarto, eu realmente gritei. Eu corri do quarto, bati a porta sem olhar para trás, para o que estava quebrando o vidro da minha janela, e enquanto as lágrimas começavam a se derramar eu berrava algo que era provavelmente incoerente, com exceção de algumas palavras - e o pouco que minha mãe entendeu foi o suficiente para que ela percebesse que havia algo ou alguém em meu quarto.

  Ela me ergueu nos braços e correu escada abaixo, passando pela porta da frente e atravessando a rua até a casa do vizinhos, onde ela estivera nos últimos seis minutos, entregando algo que havia costurado para eles.

  Nós chamamos a polícia, e quando eles chegaram ali, eu já estava mais calmo. Não conseguia parar de chorar, por ser um bebezão, mas através dos soluços trêmulos, eu consegui lhes contar o que havia acontecido. Ninguém acreditou em mim, claro. Os olhares que trocavam eram óbvios - minha mãe se desculpando ao vizinho e à polícia, o aborrecimento dos policiais comigo e o alívio do vizinho ao ver que não havia nada de realmente errado. Eles não acreditavam.

  Não até irem investigar - para eu me sentir melhor - e descobrirem que não havia marcas no chão que poderiam ter sido feitas por uma escada, que a janela havia sido quebrada do lado de fora e que não havia nada indicando que algo fora atirado para o lado dentro. E não até que encontraram o líquido escuro e castanho-avermelhado no vidro, que havia respingado pela moldura da janela e se espalhado por manchas alongadas que lembravam vagamente marcas de dedo em cada lado da janela; como se alguém tivesse agarrado a parede e a moldura para se lançar dentro do meu quarto.

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